Cyberpunk 2077
Um espaço urbano sufocante, onde riqueza e miséria se sobrepõem em camadas verticais.
O ar é pesado de fumaça, ozônio e o cheiro metálico das fábricas que nunca dormem. Há um zunido constante — drones passando acima da sua cabeça, anúncios holográficos piscando em tons de neon, sirenes distantes misturadas ao som grave de carros e motocicletas turbinadas. É como viver dentro de uma máquina que nunca desliga.
Arranha-céus de vidro e aço se erguem como catedrais de um novo culto, cada um marcado pelo logotipo brilhante de uma corporação. Lá em cima, o poder é frio e inalcançável, protegido por segurança privada, helicópteros blindados e contratos que valem mais do que vidas humanas. Mas ao descer para as ruas, tudo muda. O asfalto está quebrado, os becos cheiram a óleo queimado e sangue seco, e cada esquina pertence a alguém: uma gangue, um traficante, uma pequena operação ilegal.
Este lugar não tão ficcional fica na costa da Califórnia, entre São Francisco e Los Angeles, oficialmente chamada de Night City, Free State of Northern California. Foi fundada nos anos 1990 por Richard Night como um projeto utópico de cidade corporativa, mas logo após sua morte violenta, mergulhou em ciclos de violência, corrupção e guerras entre corporações.
A Sociedade
A cidade é sustentada por quatro camadas sociais que, ao mesmo tempo, se alimentam e se destroem mutuamente.
Corporações – São as verdadeiras donas de Night City. Suas fábricas produzem quase todos os bens de consumo, físicos ou virtuais, e seus empregos moldam direta ou indiretamente a vida dos cidadãos. Até mesmo serviços que deveriam ser públicos — como saúde ou energia — são terceirizados a elas, disponíveis apenas para quem pode pagar.
As corporações cooperam na manutenção do sistema, mas disputam entre si com violência brutal. Não desejam o colapso da cidade, pois é dela que extraem riqueza, mas também não hesitam em travar guerras privadas que transformam inocentes em baixas colaterais.
Governo – Apesar da tirania corporativa, ainda existe um simulacro de democracia. Prefeitos são eleitos, às vezes até em votações livres, mas apenas candidatos submissos às corporações conseguem chegar ao poder. Sua função é a de vassalos, marionetes encarregadas de manter a ilusão de ordem. O governo se manifesta quase exclusivamente através da polícia, sua ferramenta de controle, enquanto até tarefas básicas — como coleta de lixo — permanecem negligenciadas.
O crime – A cidade não gera empregos suficientes, e muitos são empurrados para a criminalidade por pura necessidade. As organizações criminosas, longe de serem apenas toleradas, são frequentemente usadas como peças no tabuleiro das próprias corporações, que as contratam em guerras de bastidores.
As facções criminosas possuem nomes, estilos e territórios distintos, mas no fundo todas disputam as mesmas migalhas de poder, assim como as corporações disputam o topo. Entre elas, existem ainda os mercenários independentes, sem afiliação fixa, que vendem seus serviços a qualquer cliente, seja ele uma gangue, um político ou uma megacorporação.
O resto – Para quem não serve a nenhuma das três esferas — corporação, governo ou crime — resta apenas a margem. Nessas ruas, a cidade mastiga e cospe os inúteis, drenando até a última gota de suas vidas. Em Night City, sobreviver já é uma vitória rara, e mesmo os sobreviventes carregam cicatrizes que a cidade nunca deixará sarar.
Os Governos
Existem muitas formas de explicar por que Night City não funciona como uma cidade comum. Três conceitos ajudam a compreender esse caos — mas há um quarto que, acredito, descreve melhor sua realidade.
Anarquia → ausência de governo centralizado, mas não necessariamente de ordem. Frequentemente associada à autogestão e à autonomia comunitária.
Acracia → ausência de governo ou autoridade (a = negação, kratos = poder). Em alguns contextos, aparece como sinônimo de anarquia.
Anomia → ausência de normas sociais, conceito de Émile Durkheim. Nesse caso, não se trata apenas da falta de governo, mas da inexistência de regras comuns que sustentem a convivência.
Essas três noções coexistem em Night City. Em certos distritos, o governo recuou e deixou que as gangues assumissem o papel de autoridade. Em outros, nem mesmo isso: o que resta é apenas uma zona de guerra.
Anarco-capitalismo
Ainda assim, o sistema que melhor define a lógica de Night City é o anarco-capitalismo. A cidade funciona em um regime de ausência prática do Estado, mas sua organização social ainda é regida pelo livre mercado e pela propriedade privada.
O princípio básico dessa filosofia é a primazia da propriedade. No entanto, em um contexto onde não há monopólio legítimo da violência — papel tradicional do Estado — essa proposta se torna instável. Para equilibrar minimamente a balança, mantém-se um sistema democrático frágil, que garante apenas uma fachada de governança. Fora isso, as corporações concentram poder desmedido, inclusive o uso explícito da violência.
Os efeitos previstos por críticos do anarco-capitalismo se confirmam plenamente em Night City:
Sem regulação, as corporações substituem o Estado e passam a dominar todos os aspectos da vida.
Mesmo em um mercado “livre”, a concentração de riqueza recria hierarquias e opressões.
Sistemas de segurança e justiça privados beneficiam apenas quem pode pagar.
É nesse vácuo de desigualdade que o crime floresce e lança raízes profundas. Mas em Night City, criminalidade não é apenas sobrevivência dos fracos: é também estratégia dos fortes. As corporações recorrem rotineiramente a mercenários para assassinar rivais, roubar tecnologia ou sabotar concorrentes. O crime é não só tolerado, mas integrado à lógica de funcionamento da cidade.
O Vilão
Não são apenas as corporações que funcionam como vilãs da história. Elas próprias são vítimas, em certo sentido, vivendo em estado de sítio permanente umas contra as outras. Pessoas comuns morrem nas ruas, enquanto executivos são assassinados nos corredores de poder pelas mesmas organizações que acreditam controlar.
Minha proposta é que a verdadeira vilã é a própria cidade. Não no sentido de possuir consciência, mas porque os incentivos que regem seu funcionamento produzem uma competição sem limites entre todos os seus habitantes. Night City é uma máquina que estimula a traição, a violência e o descarte — onde o avanço de carreira e o acúmulo de poder valem mais que qualquer contrato, amizade ou princípio. Aqui, bondade e lealdade são atos de resistência contra um sistema desumano e desumanizador.
Não são os indivíduos que são maus, mas o mundo que lhes oferece poucas, ou nenhuma, alternativa.
O Leviatã
Thomas Hobbes descreveu o Estado moderno como um Leviatã: uma criatura gigantesca, formada pelo corpo coletivo dos cidadãos, cuja função era garantir ordem e segurança. Em Night City, porém, esse Leviatã não é o Estado — é a própria lógica do capitalismo corporativo que devora tudo ao seu redor. Um monstro sem rosto, composto pelas corporações, pelas gangues, pela tecnologia e até pelos sonhos de seus habitantes. Um poder difuso, onipresente, impossível de ser derrotado por um único ato de heroísmo.
É aqui que Johnny Silverhand se torna emblemático. Ele é um personagem fantástico pela sua uni dimensão digna de um herói clássico grego. Um homem dotado de virtudes e falhas mas que em seu cerne possui apenas uma paixão, neste caso o ódio pelo mostro que é Night City, e ele vai até as últimas circunstancias para tentar destrui-la detonando uma bomba nuclear, uma arma que por si só já possui simbolismo forte e cataclísmico em nossa cultura, no coração da cidade.
Sua explosão nuclear contra a Arasaka foi o gesto máximo de revolta contra o Leviatã. Mas décadas depois, a corporação retorna ainda mais poderosa, e a cidade permanece inabalável. O ato de Silverhand, pensado como libertação, revela-se apenas uma faísca contra um oceano. O Leviatã não apenas sobreviveu: adaptou-se, cicatrizou e continuou a crescer.
Este não é o único exemplo de atos desse tipo no mundo de Cyberpunk. Durante o jogo, você encontra diversos relatos de pessoas que tentaram enfrentar o sistema à sua maneira, em diferentes dimensões. Um exemplo marcante ocorre durante uma missão em que você encontra um tablet antigo, datado da época em que a internet ainda era unificada e controlada pelas corporações. Um hacker, na tentativa de destruir esse controle corporativo, conseguiu derrubar a rede inteira. Mas o resultado foi inesperado: a internet se fragmentou em feudos digitais, cada um mais autoritário e controlador do que o anterior, mostrando que, muitas vezes, a revolta contra o Leviatã gera consequências ainda mais complexas e difíceis de prever.
A Catarse Roubada
Na Poética, Aristóteles descreveu a tragédia como uma forma de provocar catarse — a purgação das emoções de piedade e temor, que gerava alívio e reflexão no espectador. A maior parte da ficção moderna segue esse modelo, conduzindo heróis e público a uma resolução que oferece sentido e fechamento.
Cyberpunk 2077 recusa essa lógica. Ao invés de catarse, entrega frustração e circularidade. O ataque de Silverhand não destruiu a corporação. A luta de V não altera o destino da cidade. Night City permanece intocada, indiferente às tragédias individuais. Sua única saída é a fuga — escapar de um Leviatã que não pode ser morto.
E é justamente nessa recusa à catarse que o jogo revela sua originalidade: Night City não é apenas cenário, mas agente narrativo. Uma encarnação brutal do capitalismo distópico, um espaço que transforma corpos em mercadoria e sonhos em simulacros. Ao negar ao jogador qualquer promessa de redenção, Cyberpunk 2077 cumpre a função mais profunda da ficção científica: não oferecer respostas fáceis, mas iluminar com clareza cruel os mecanismos do presente projetados em um futuro que já chegou.
A Razão de se ter esperança
O jogo me afetou muito mal. Eu joguei em uma semana em que estava me distanciando de todos devido a uma gripe muito forte que me derrubou por uma semana e minha principal companhia era este jogo. Eu fui assolado por uma sensação de profunda desesperança após jogar este jogo porque ele é desesperançoso por proposito. A escolha narrativa da CD Project é de que o “heroi” da historia não pode sobreviver mas o que é difícil observar no meio da destruição e morte é que existe o caminho da fuga da cidade. O Leviatã não pode ser destruído mas ele só pode sobreviver enquanto se alimenta de pessoas e a única forma de vencer se torna fugir dele.
Judy e Panam fogem da cidade e constroem novas vidas longe onde elas podem ser realmente livres da violência predatória da cidade e da logica competitiva que rege os relacionamentos dentro dela mas a única forma delas conseguirem isso é graças a ajuda de um herói que se sacrifica por elas. A mesma logica se aplica para a serie animada onde David morre lutando contra o seu Golias, Adam Smasher, mas em troca sua amada consegue fugir para a Lua.
Paradoxalmente o Leviatã não consegue destruir a alma e esperança humana mas ao mesmo tempo precisa que as pessoas tenham a esperança de sobreviver e florescer na cidade grande para quela ele continuem atraindo presas para se alimentar. Muito como no mito de Pandora a esperança esta no fundo das duas caixas que ela abre, a que contem todas as pragas e todas as virtudes. A historia de pandora nos diz que a esperança é uma faca de dois gumes e também acredito eu ser uma parte integral do ser humano.
Existe um final feliz em Cyberpunk! Você não precisa jogar os jogos de exploração e poder! Você não pode se desligar completamente do mundo moderno hoje assim como provavelmente no jogo mas você pode resistir e se tornar um nômade. A vida não será fácil mas você será livre e poderá viver e morrer nos seus próprios termos.